sexta-feira, novembro 10, 2006

Alma Salgada na SurfPortugal

Este mês foi publicada na Surf Portugal uma carta que para lá enviei. Por um lado fiquei contente da terem publicado, por outro ela é extremamente pessoal e só a enviei num impulso que foi igual ao que ma fez escrever... Deixo-a aqui para quem tiver interesse em a ler:

"Há coisas na nossa vida, que não podemos escolher, entre elas está o facto de ter nascido no interior, longe do mar, no Alentejo (profundo). A praia para mim era uma experiência de Verão, nas férias, muitas vezes passadas na Costa Alentejana, em Almograve ou na Zambujeira. Lembro-me de ser miúdo e pensar que era num daqueles sítios que iria morar mais tarde. Foi também numa dessas férias que vi pela primeira vez alguém surfar e de ter ficado completamente extasiado com a possibilidade de o vir a fazer. Essa realidade teve no entanto de esperar, pois continuei a viver no interior até entrar na faculdade. Isso aconteceu em 93 quando tive a sorte de ingressar na Faculdade de Ciências e Tecnologia no Monte da Caparica, a meio passo das praias da Costa. Juntei a esforço algum dinheiro e a meias com um colega comprei a primeira prancha, uma Atlântico 6'8'', que já tinha sido partida ao meio nas mãos do anterior dono. Por acaso esse meu colega nunca a chegou a usar, mas eu pelo contrário entrava praticamente todos os dias e em pouco tempo lá me comecei a levantar nas espumas, completamente "stoked" com a coisa.

Entretanto o curso não correu às mil maravilhas, talvez, em parte, por escolher surfar nas manhãs de off-shore em vez de assistir às aulas (coisa da qual não me arrependo nada). Assim fiquei mais uns anitos na faculdade, para além dos que devia. No entanto, como eram os meus pais que estavam a custear essa minha falta de responsabilidade, resolvi começar a trabalhar mais cedo, mesmo estando em falta algumas cadeiras. Entrei para uma empresa em Lisboa, onde entrava às 8h30m e saía às 18h ou 19h. Durante o Inverno era quase impossível surfar, pois no fim-de-semana tinha de estudar para acabar o curso. As surfadas, muitas vezes, eram feitas à hora de almoço, quando conseguia fugir ao meio-dia do escritório. Ia a abrir para a Costa, surfava 1 horita, comia uma sandocha e voltava a correr para o meio do pessoal engravatado, eu com o cabelo ainda meio molhado e as sobrancelhas cheias de sal.

Foi nessa altura que, apesar de em parte gostar do que fazia, percebi o que não queria que a minha vida fosse. Talvez inspirado pelos textos do Cadilhe, talvez por ter sempre vivido um pouco à margem do convencional, resolvi que não iria trabalhar enclausurado num escritório, da casa para o trabalho, do trabalho para a casa, sem tempo para nada. A minha vida estava com um conteúdo limitado, desinteressante, sem qualquer luz...

Entretanto a minha namorada tinha acabado o seu curso ao melhor estilo de menina bem comportada, nos 5 anos e com muito boa média e teve oportunidade de vir a trabalhar na nossa cidade natal, no Alentejo profundo. Sendo assim, só nos víamos em contra relógio aos fins-de-semana. Ainda tentou arranjar emprego mais perto de mim, mas na área em que trabalha, não há muita oferta de emprego e o dela ao menos era estável… Desistiu da ideia...

Foi então que resolvi fazer algo, que na verdade, não me foi nada fácil, deixar aquele emprego, a possibilidade de carreira e aceitar uma proposta de trabalho longe do mar mas perto dela. Coisa de apaixonado. Voltei para outras ondas, as das planícies alentejanas semeadas de sobreiros e azinheiras. Mas mantive-me a surfar aos fins-de-semana em incursões à costa… Casei, comprei por lá casa e tive há um ano um rebento. Mas não foi como nos contos de fadas, não fiquei feliz para sempre, pois vi-me amputado de uma vida ao pé do mar… É verdade que tenho uma vida com uma qualidade que sei acima da média. O puto T (Tiago, o meu filho), não é despejado para uma qualquer creche, na altura em que trabalhamos, vai antes para a casa de uma familiar já reformada e com muito amor para lhe dar. Os avós estão presentes na vida dele, tal comos as tias e sei, que este é um local onde ele pode crescer de forma saudável… A minha casa, comprada pelo preço de uma casa modesta em Lisboa, é do dobro do tamanho do que seria por lá e com o dobro das condições, em vez de estar no meio do betão estou a minutos do campo e tenho muito mais tempo livre, pois não perco uma hora ou duas no trânsito.

Falta talvez dizer que, entretanto e como a vida tem daquelas coisas que a gente não entende, após 6 meses de vir trabalhar para o Alentejo, depois de renunciar ao óbvio, não me renovaram o contrato e fiquei desempregado. Ao contrário do que possam pensar, esse foi um momento de sorte, um ponto de inflexão na minha vida, pois foi esse facto que me motivou a trabalhar por conta própria, com um colega de Lisboa, o que me permite passar algumas temporadas por lá e alguma flexibilidade para poder surfar de vez em vez.

Escrevi em parte, para vos dizer que, em muito contribuem para que eu continue a procurar o mar e não desista de sonhar em voltar para ele.

Somos nós que desenhamos a nossa vida, mas nem sempre a podemos pintar com as cores que queremos… cada passo que damos numa direcção nos afasta de outra. E por vezes as escolhas que fazemos, com objectivos aparentemente acertados, também nos condicionam e nos encerram em becos sem saída.

Pedro Ferro
Estremoz"


Resposta do Ed
“E aqui está uma mensagem que nos dá o raro prazer de dizer bem alto: dever cumprido! Só por isso, agradeço-te, Pedro e lembra-te sempre das sábias palavras de Rabbit Bartholomew: "Se o surf corre bem, a tua vida corre bem" “

Não me esqueço não senhor, para além de concordar com estas palavras até acho que já as usei aqui no blog!

8 comentários:

Anónimo disse...

Espectáculo Pedro!!!!

Grande abraço e queremos mais textos aqui no blog!!

Luis Paulo Magalhães disse...

Parabéns Pedro. Demorámos a publicar a sua carta pois as opiniões aqui na redação dividiam-e entre quem achava que ela devia ser publicada, e quem achava que isso ia tirar protagonismo aos nossos cronistas habituais. Sendo assim ganhou o pack do mês que nesta edição consiste numa viagem para dois adultos e duas crianças ao resort de Lohifushi nas Maldivas, com tudo incluído.
Ed.

P.S.-Caso escolhas uma data em que o teu segundo rebento ainda esteja a surfar ás escuras fica sabendo que eu ainda festejo o dia da criança...:)

Pedro Ferro disse...

Ai era tão bom, era, se fosse verdade!

Talvez p o ano ainda não tenha nem o dinheiro, nem a disponibilidade, devido ao novo rebento que por aí vem a caminho... Mas as Maldivas ainda se mantém nos meus destinos de sonho, para o qual ainda vislumbro a possibilidade de visitar...

Por enquanto fico-me a sonhar com locais mais acessíveis p o bolso... Talvez p o ano consiga ir às Canárias, ou aos Açores ou quem sabe a Angola... quem sabe... fiquei obcecado com a onda que o Cadilhe mostrou na SurfPortugal (e tenho uma amigo em Angola que já lá foi e está à minha espera... pena o custo de vida por aquelas bandas)

Anónimo disse...

Tiveste coragem de fazer o que muita gente não tem !
Achei engraçado ler, ''influenciado pelas palavaras do cadilhe'', pq acabei de ler o livro dele, ''No inicio estava o mar'', e...este livro marcou um ponto de viragem na minha vida, por isso percebo o que aqui escreves...e do que falas!
Boas Ondas!Fica Bem!
Vou passar mais vezes, até ao próximo post!

Anónimo disse...

Tiveste coragem de fazer algo que muita gente não tem!
Achei engraçado ler, ''influenciado pelos textos do Cadilhe'', porque acabei de ler o livro dele''No inicio estava o mar'' e esse livro para mim foi uma marco de viragem! Por isso sei do que falas!
Boas Ondas!
Até ao próximo post.

Anónimo disse...

Pedro,

Queria conversar com você sobre essas tattoos do Jun. Você poderia me ligar quando tiver um tempo? 55 11 3767-7020. fsabba@edglobo.com.br
OBrigado!
fabio

Abrasar disse...

Fabuloso texto, mas acima de tudo a riqueza dele é o episódio de vida real que descreve e a reflexão que posteriormente nos invade...
Desejo as maiores felicidades para ti e família, deste iniciante a aprendiz de surf.

V.Santos

Pedro Ferro disse...

Obrigado pelas tuas palavras... é bom saber que as nossas palavras podem gerar algumas reflexões!